A boleia

Um conto baseado num emotivo episódio da vida real. 
 
Para a minha mãe 
In Memoriam



Naquele tempo não muito distante era fácil apanhar boleia numa qualquer estrada nacional, o que permitia a um estudante universitário sem dinheiro como eu viajar pelo país de forma económica e ir a casa todos os fins-de-semana. Assim, aos sábados de manhã lá estava eu invariavelmente especado na berma da N103, logo à saída da cidade dos arcebispos, a esticar o braço e o polegar a quem conduzisse na direcção de Viana-do-Castelo. Como seria de esperar conhecia-se desta forma todo o tipo de personagens; não existe um padrão do ser humano generoso que arrisca transportar um pendura jovem e robusto que bem pode ser um meliante que o vai assaltar a meio da viagem. É claro que todos, tanto os que pediam boleia como e os que a davam, tinham consciência do risco mas a fé na humanidade devia estar em alta naquela época porque eram muitos os que paravam, homens ou mulheres. E era essa incursão aleatória pela natureza humana, assim exposta aos destinos imprevisíveis da estrada, que cada vez mais me fascinava. Eu também percebia claramente que alguns hesitavam, provavelmente a avaliar-me, acabando por deter o carro já muito adiante e obrigando-me a dar uma corrida para o apanhar sem parecer ingrato. Foi o que aconteceu naquela manhã solarenga de Junho em que o destino me preparava mais uma das suas irónicas lições.
 
Havia modelos de automóveis aos quais eu já nem ligava; os veículos de alta gama quase nunca se detinham e os chaços, a menos que fossem conduzidos por alguém de uma idade próxima da minha, também não. Mas naquele dia fiz sinal ao condutor do Mercedes e ele desacelerou, parando uns cinquenta metros à frente. Quando o apanhei perguntei, antes de entrar e sem mais apresentações “... pra Viana?” e ele “... não, só até Barcelos”, “tudo bem, eu aproveito, depois apanho outra boleia para cima”, respondi. E entrei. Dava para perceber que estava no carro de alguém bem instalado na vida; modelo caro, sistema áudio de topo e um daqueles telefones móveis volumosos e vistosos como um tijolo de acrílico que só se encontravam naquela gama de veículos e de status social. Como eu era um rapaz tímido e não me importava de passar toda a viagem em silêncio, fingindo observar a paisagem, nunca tomava a iniciativa de entabular conversa. Mas o homem, num tom cordial, começou pelas perguntas da praxe, o que é que eu fazia ou estudava, se ia a casa todos os fins de semana, se andava sempre à boleia ... E foi falando também um pouco dele e da família, dos dois filhos que deviam ter aproximadamente a minha idade e da pequena fábrica de cerâmica que tinha perto da cidade dos famosos galos de barro. O certo é que por razões que só a alma humana saberá mas nunca revela nem ao próprio, comecei a simpatizar com o sujeito. E isso deve ter sido mútuo porque quando estávamos próximos do ponto onde ele deveria abandonar-me, reconsiderou: “Ouça, eu acho melhor não o deixar aqui; estamos na hora de almoço e vai ser difícil você apanhar alguém que vá para cima tão cedo; vou levá-lo a Viana, só tenho que ligar à minha mulher a dizer que chego meia hora mais tarde. Ou, espere lá... você tem alguém à sua espera em Viana? Se não tem, venha almoçar connosco lá a casa.” Aquilo sensibilizou-me e eu não tinha ninguém à minha espera no destino. Ainda hesitei, acanhado, mas aceitei.
 
Quando chegámos à esplêndida moradia do casal fui apresentado à mulher dele que me recebeu sorridente e maternal, e ao filho mais velho, um tipo simpático mas ainda mais introvertido do que eu. Começaram por mostrar-me as pequenas peças decorativas que produziam; era ela quem as engenhava e decorava, porcelanas de construção delicada mas de desenho ingénuo, pouco originais na sua maioria. Reparei que enquanto ela apresentava tudo aquilo orgulhosamente o meu anfitrião permanecia à margem como um mero observador e a certa altura disse que ia à cave buscar uma garrafa de vinho especial para o almoço. Assim que ele se ausentou, a mulher suspendeu a conversa e depois de uma breve pausa voltou a falar, ainda na presença do filho, com uma alteração de semblante e de tom voz que me apanhou desprevenido e me abalou: “Estou tão triste! Deixe-me dizer-lhe isto enquanto ele não vem: o meu marido vai sair de casa, vai deixar-nos, não sei o que fazer. Por favor ajude-me, ele parece gostar de si, fale com ele.” Nesse momento observei no rosto fechado do filho uma angústia envergonhada que eu bem conhecia. E depois disso, silêncio. Nem eu sabia o que dizer nem parecia ser devido responder perante aquilo a que assisti, pois durante os poucos segundos que demorara a pronunciar um tal lamento, uma tal súplica, aquela mulher chorara na minha frente, não com lágrimas exteriorizadas mas com as que correm por dentro que é a forma mais ostensiva de manifestar a dor e a mais contundente para quem as consegue ver, como eu vi. Mas o que mais me surpreendeu foi ela saber que eu conseguiria perceber, ao ponto de sentir como senti a dor que ia lá no fundo, para se aventurar a fazer-me aquele pedido com tanta veemência. Eu ainda não tinha aprendido que o coração pode ser um órgão adestrado para sondar profundamente através de camadas de aparência que julgamos totalmente opacas.
 
Assim que ele regressou com a garrafa passámos para a sala onde a mesa já estava posta e continuamos numa conversa jovial sobre um tema qualquer que eu não conseguiria recordar. Porque durante todo o almoço, enquanto se falava de forma aparentemente despreocupada, eu revia através deles a recente separação dos meus pais e a ruína do nosso saudoso lar e reflectia em como é admirável e aperfeiçoada a tão antiga arte de compor retratos de família. Ocorreu-me que se  não me tivesse sido dado a ver aquele zoom drástico revelador da ferida disfarçada no âmago da imagem ideal, teria ido dali sentindo uma inevitável inveja daquela felicidade. Eu, que, de tão habituado a estas técnicas de enquadramento cuidadoso da vida, não podia entender que os retratados saíssem assim desusadamente da fotografia, como aquela mulher havia feito, e viessem procurar, logo em mim, a ajuda que eu nunca havia tido, nunca tinha pedido e possivelmente nunca pediria. Tudo o que eu podia fazer por eles era o mesmo que nada e talvez fosse afinal tudo... era estar presente e comungar com eles em silêncio a tristeza pesada de uma esperança inútil.

Já tinha sido combinado que após o almoço ele iria levar-me a Viana do Castelo. Não, não lhe custava nada! E aceitei uma vez mais. Despedi-me do filho e da mulher que me fitou longamente dizendo com o olhar súplice e derradeiro “Não se esqueça...” e me ofereceu na despedida uma singela peça de cerâmica representando uma pequena ave pousada sobre o sarilho de um poço cercado por um murete de pedra. Durante a curta viagem que se seguiu eu pensava como poderia atrever-me a abordar com o homem aquele tema delicado. Devia-o àquela mulher, a quem o tinha prometido sem palavras que é a forma mais vinculativa de comprometimento, talvez o devesse mesmo àquela família, ou à minha, ou a todas as outras que estivessem na mesma senda de desagregação. Mas que sabia eu da vida deles? Quem era eu para dar algum conselho ou fazer algum pedido? Ao fim de alguns minutos de silêncio desconfortável atrevi-me apenas a comentar na esperança ingénua de com isso poder tocar no assunto “A sua mulher parecia triste quando falou comigo antes de almoço, aconteceu alguma coisa?” Mas a resposta veio calma e concisa, calculada durante uns breves segundos “Não... as mulheres são assim, mas vai ficar tudo bem.” O resto da viagem decorreu sem mais palavras. Parámos logo à entrada da cidade, no fim da velha ponte, e eu despedi-me sinceramente agradecido, disfarçando num sorriso forçado o desgosto que sentia.
 
Enquanto caminhava para casa pelas vielas antigas e tristonhas da cidade, eu começava a deixar fluir a mágoa despertada por aquele encontro singular. Tão miseráveis somos quando nos é exigido, ainda que por instantes, salvar do naufrágio à vista alguma coisa de valor, quando alguém desconhecido em nós deposita uma última réstia de esperança e não queremos ou não sabemos e nem teríamos alento para o fazer, ainda que quiséssemos! E assim ficamos eternamente a questionar-nos: qual é o sentido de a vida nos atirar despudoradamente à cara esta miséria humana, estas desgraças? De nos apelar desta forma tão cruel a assumir um papel de salvador que nem ao universo nem aos deuses parece interessar?

Aquela peça com a ave pousada sobre o poço de cerâmica foi levada para a nossa antiga casa da aldeia. Eu acabaria por a oferecer à minha mãe a quem contei a história da boleia omitindo por razões óbvias os pormenores sentimentais que ela, no entanto, pareceu ter intuído, a julgar pelo sorriso contristado que lhe vi no rosto quando tomou nas mãos a porcelana e pelo lugar de destaque em que a colocou na sala.

Vítima da fractura provocada por uma queda recente, esta mulher que me deu à luz está agora retida em casa após uma cirurgia à anca. Há dias, numa das  espaçadas visitas que lhe faço quando volto a Portugal, ela pediu-me “Abre-me aquele baú pequeno; eu perdi-lhe a chave, vê se a encontras ou então arromba-o; tenho lá coisas que te quero mostrar e explicar enquanto me lembro.” E eu lá fui à procura da chave, na esperança de poder conhecer aqueles fragmentos de memória com os seus testemunhos condensados em fotografias desbotadas e outros objectos diminutos, o tanto e o tão pouco que o lume brando do tempo permite destilar da experiência de uma longa vida humana. Vasculhei a casa toda em vão e ao fim do segundo dia de buscas desisti, convencido de que iria ter que pegar nas ferramentas, usar a serra de metal ou a gazua para forçar o vetusto aloquete. Preparava-me já para o trabalho de arrombamento quando, ao passar na sala, reparei naquela peça de cerâmica em forma de poço com ave empoleirada, olvidada sobre a cristaleira, a única que eu não tinha inspeccionado. Peguei nela e no fundo da cisterna miniatura lá estava uma pequena chave enferrujada que eu sabia ser a que procurava.

Agora que aquele repositório das suas recordações fora aberto ela passava-as em revista e ia-mas comentando. A dado momento retirou do baú mais um envelope com algumas fotografias a preto e branco. Perguntou-me “Sabes quem é esta mulher que aqui está ao meu lado?” Não, eu não fazia ideia. “Conhecemo-nos em Angola, eras tu pequeno; ela dava aulas na mesma escola que eu. Éramos muito amigas mas nós viemos embora e ela e o homem ficaram por lá. Nunca mais nos vimos nem nunca mais soube deles. E agora vou-te contar como a voltei a encontrar, nem vais acreditar...” Foi assim que fiquei a saber.
 
Um dia, a minha mãe, de passagem pela cidade onde já raramente ia, vira no escaparate de uma loja de bric-à-brac, entre muitas outras peças de todas as formas e tamanhos, uma cerâmica com uma ave em cima de um poço, igual à que eu levara para casa naquele fim de semana remoto. Ficou tão curiosa que entrou, só por impulso. Lá dentro, por detrás do balcão, viu um rosto de mulher, aparentando também já mais de setenta anos, que lhe pareceu familiar mas sem o conseguir reconhecer. Explicou que tinha entrado só por curiosidade porque tinha em casa uma peça igual à da montra, que alguém desconhecido tinha oferecido ao filho há muito tempo. A mulher da loja estremeceu de surpresa; só tinha feito duas peças como aquela e uma delas estava associada ao episódio cujos tristes contornos eu nunca contara à minha progenitora. Recordou então a minha passagem lá por casa e falou daquela época e da que a antecedera, quando vivia em África com o marido. Foi a partir dessas memórias que as duas se reconheceram mutuamente depois de tantas décadas. Estavam ambas sós, a viver das recordações e das ocupações inventadas para iludir o decurso silente do tempo. A partir daí passaram a encontrar-se com frequência. Disse-me “Sabes, tem sido uma boa amiga, uma companhia; vem-me visitar todas as semanas desde que estou aqui presa em casa. É uma das poucas pessoas com quem me consigo entender; nesta idade, já não há quem tenha muita paciência para nos aturar.”

Lembrei-me da questão que naquele dia longínquo eu colocara angustiadamente à vida, uma questão para a qual nunca esperara ter resposta.






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