Um cavalo chamado Liquiçá

A Guerra e a Humanidade pelos olhos de uma criança

 
Para a Gui. Para todos os que conseguem permanecer crianças.
 
Esta pequena narrativa é inspirada na história contada pela Mariazinha, mulher-menina que na sua infância, em Timor-Leste, vivenciou a mágica natureza das coisas que muitos julgam que só ocorrem nos contos. O conto foi escrito há alguns anos e não foi publicado antes por razões que nem o autor consegue explicar. Neste momento já não poderia continuar na gaveta.
Aveiro, Março 2022


I - Os dias felizes em Timor

II - A vida e a guerra em Liquiçá

III - O outro lado da vida, o outro lado do mundo
 
 

 

 
Inspiração: A história real em que este conto se inspira é narrada no filme documentário de 2017 Rosas de Ermera, realizado por Luís Filipe Rocha, em que é entrevistada a protagonista Maria Afonso dos Santos e também o seu irmão João Afonso dos Santos, ambos irmãos do icónico e saudoso cantautor português Zeca Afonso. Todos os nomes de pessoas, com excepção da Mariazinha que inspira este conto, são ficcionados tal como os caracteres pessoais e a maior parte dos eventos aqui relatados.

Créditos das ilustrações: todas as ilustrações são originais do autor do conto e podem ser encontradas nesta página do Instagram.

Tradução para inglês: a versão em língua inglesa deste conto pode ser lida nesta página da plataforma Medium.

English edition: the English language version of this tale can be read on this Medium platform page

 

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«Je vois la guerre sous les mêmes couleurs que mon enfance.1»


I - Os dias felizes em Timor

Foi em Timor-Leste, no tempo da guerra, da Segunda Grande Guerra, como os adultos lhe chamaram.

Eu tinha um cavalo chamado Liquiçá. O pelo dele era cinzento escuro, azulado, quase preto, com uma mancha branca na testa, uma mancha em forma de coração. Disseram-me que ele tinha o mesmo nome de uma terra à beira-mar, que em tetum se dizia Likisá. Por isso comecei a chamar-lhe Liki. Era mais fácil e mais carinhoso.

O Liki tinha-me sido oferecido no meu sétimo aniversário por um amigo do meu pai, o Dr. Fonseca. Assim, eu comecei a montar com sete anos e aos nove já cavalgava livremente pela ilha. Não usava selim, apenas as rédeas e o freio. Em Timor poucas pessoas tinham cavalos. E muitas espantavam-se de me ver montar tão nova e sozinha.

Antes da guerra nem a rádio portuguesa ouvíamos. Não sei se era por estarmos tão longe de Portugal ou por querermos viver longe de todos os problemas. Eu era totalmente livre naquela terra onde tinha tanto espaço, espaço para passear, para cavalgar. E tempo, muito tempo. Tempo para ficar só, parada a olhar, parada a pensar, parada no tempo…  
Havia um regato detrás da nossa casa. Eu costumava ir para lá, só para  ficar a ouvir o canto ondulante da água que se perdia entre pedras e raízes. Percebi que ao fim de algum tempo parada a escutar eu conseguia ouvir o silêncio da ribeira.


 

E havia o mar… O mar, aquele reino infinito de azul profundo e tranquilo; era junto dele que eu esquecia tudo e me perdia. A cavalo no Liquiçá, ao longo do areal, eu conseguia ver as cores vivas dos peixes através da água. Ficava a olhá-los, admirada com as suas diferenças - uns pequenos e inquietos, sempre em movimento; outros solenes e lentos como se nada temessem – todos eles entretidos no seu meio, ignorantes da nossa presença, do nosso mundo. Pareciam felizes.

Eu adorava ouvir o mar. O som da ondulação calma a desfazer-se na praia parecia vir de tão longe como o horizonte, ou talvez mesmo de ainda mais além, a misturar pelo caminho todos os sons do oceano – as vozes de todos os peixes, de todas as aves marinhas, de todos os marinheiros, de todos os navios – para chegar até mim como um murmúrio sem tempo e sem lugar. E ficava a pensar se do outro lado, muito para além do horizonte, haveria alguém também sentado à beira-mar a sonhar com este lado do mundo.

Com o Liki eu não me ralava com a distância. Podia distrair-me na praia ou na floresta, e voltar velozmente para casa. A galopar, com a minha cabeça encostada ao pescoço dele, eu sentia ondular na minha cara os cabelos do vento.

Aqueles foram os meus dias felizes em Timor. Vivíamos numa casa grande de paredes brancas. Ficava numa encosta da montanha, perto da capital, Dili. Da nossa varanda avistava-se o mar por entre a ramagem florida de um jacarandá. Logo pela manhã a casa era inundada pelo sol que nascia na brancura das paredes do meu quarto e incendiava o chão de tijoleiras vermelhas com uma luz quente que me enchia de alegria e de vontade de sair para conhecer o novo dia. Mas havia uma sombra de mágoa lá em casa…  no coração da minha mãe. Ela disfarçava, sorria, mas eu sabia da sua tristeza. Não conseguia ser feliz sem os dois filhos que deixara para estudarem em Portugal. Os meus dois irmãos, que eu mal tinha conhecido.

À noite, depois de jantar, eu gostava de sair para a varanda e ficar a observar o céu. Por vezes escapava-me de casa para ver os pirilampos. Fascinavam-me aquelas luzes minúsculas e brilhantes como estrelas caídas na Terra. Antes de eu adormecer, a minha mãe lia-me sempre um pequeno conto. A maioria eram histórias incríveis, que algumas vezes eu não entendia, ou tinham um final que eu não queria aceitar. Para mim, muitas eram demasiado tristes, embora os adultos parecessem achá-las bonitas. Ainda agora há muitas coisas naquelas histórias que eu não entendo. Mas com o passar do tempo fui começando a acreditar que tudo o que dizem os contos é possível, porque na vida também é.

***

E então chegou o dia em que as tropas australianas e holandesas se instalaram em Timor. Depois deles vieram os japoneses. Era a Guerra. Antes só tínhamos notícias dela pelas cartas da família ou pelos jornais. A partir daí os militares japoneses ocuparam a ilha e impuseram a sua autoridade. Mas mantiveram o meu pai em funções como juiz da região. Até que, certa manhã, os aviões aliados bombardearam algumas casas em Dili e instalou-se o medo. Disseram-nos que tínhamos  de abandonar a cidade e ir para Liquiçá. Quando ouvi o nome daquela localidade senti-me feliz. O meu Liki ia conhecer a terra que lhe dera o nome. E eu estava certa de que iria gostar de lá viver.

***

Nunca soube ao certo porque é que o meu pai decidiu que deveríamos viajar a pé, por caminhos alternativos, em vez de irmos de carro como muitos outros. Ele disse-nos que era mais seguro porque havia ataques frequentes aos que viajavam de automóvel pela estrada. Contava-se que havia milícias timorenses que atacavam os portugueses. Eu não queria acreditar. Mas era verdade que coisas muito estranhas se passavam naqueles dias. Isso por vezes assustava-me mas na maior parte do tempo eu sentia-me como que encantada com as novidades. Ouvíamos continuamente notícias diferentes, por vezes contraditórias. Tínhamos visitas novas e estranhas, uns homens que iam de Lisboa e que eu ouvia dizer que eram espiões…  e timorenses desconhecidos que apareciam para reunir discretamente lá em casa.  E depois, aquela viagem para um sítio com o nome do meu cavalo e que levaria alguns dias por termos de ir a pé pelas montanhas. Tudo isto criava um ambiente de mistério que me fascinava. Na altura acreditei na justificação do meu pai mas mais tarde acabei a pensar que ele quis fazer a viagem de forma diferente por ser uma aventura. Ele dizia que quando fazemos as coisas sempre da mesma forma, e como todos os outros, aprendemos muito pouco. Segundo ele, na vida, era importante procurar sempre ver o outro lado das coisas. Acho que foi por isso que um dia ele decidiu deixar Lisboa e ir para aquele lado do mundo.

Na verdade eu assustava-me com algumas coisas estranhas que aconteciam de vez em quando. Como no dia em que um grupo de militares japoneses cercou a nossa casa e ordenou que saíssemos todos para o pátio. Os meus pais estavam muito calados. Seguravam-me pela mão. Pela primeira vez na vida eu achei que eles estavam com medo. E então eu também tive medo. Mas depois o meu pai decidiu falar com o chefe do grupo de soldados. Avançou directamente para ele sem fazer uma vénia como as outras pessoas faziam. Falaram os dois calmamente numa língua que eu não entendi. De seguida, os japoneses foram-se embora deixando-nos em paz. Foi assim que eu comecei a aprender a lidar com o medo.

***

Partimos em direcção à nossa nova morada ao fim da manhã. Eu, os meus pais e um guia timorense. No fim daquele primeiro dia de caminhada estávamos todos muito cansados. Eu devia estar menos porque tinha ido a maior parte do tempo montada no Liquiçá. O meu pai levava-o pela rédea e eu não tinha que me preocupar com o caminho. Apenas olhava à minha volta. A paisagem ali era bem diferente da que eu conhecia. Tínhamos andado muito tempo pela encosta da montanha, de onde se via o mar lá muito em baixo. Por vezes eu sentia-me como se fosse um pássaro a voar muito alto, a observar de cima aquele mundo azul de água fundido na distância com o céu. No fundo da vertente onde seguíamos via-se uma estreita faixa branca que eu reconhecia como a espuma das ondas a desfazerem-se na praia. Em alguns lugares as montanhas desciam tão a pique para o mar que parecia não haver lugar para a areia. Havia apenas o verde escuro do lado onde estávamos e o azul profundo do outro. Os dois lados apenas separados por aquela faixa de renda branca. Perante aquela imensidão eu apercebia-me de como nós éramos pequeninos. Isso não me assustava, sentia mesmo um certo aconchego na ideia de que um planeta tão vasto e bonito nos acolhesse e nos desse abrigo. Mas pensava que, contrariamente ao que alguns adultos me tentavam ensinar, afinal nós não éramos assim tão especiais; talvez não fossemos mesmo nada importantes para o mundo. E entristecia-me ver como havia seres humanos a fazer dele um lugar pior para viver, uma terra de medo e sofrimento.
Deixei de avistar o mar quando tivemos que cortar caminho através da montanha.

Nessa noite tivemos que dormir na floresta, rodeados por árvores de troncos muito grossos e negros e ramos baixos e com raízes salientes como garras de animais gigantes. O nosso guia acendeu uma fogueira e depois de termos comido ele começou a falar em tetum com o meu pai. Eu não os entendia. Encostei a cabeça no ombro da minha mãe e fiquei assim sentada em silêncio a vê-los falar do outro lado da fogueira. As chamas por vezes pincelavam-nos de luz e eu percebia as expressões sérias e pensativas nos rostos deles. O que mais me impressionava era a cara do nosso guia. Naquele ambiente, a pele dele parecia ainda mais negra e brilhava intensamente nas bochechas arredondadas. E os olhos, esses sim, eram mesmo negros e reflectiam a luz do fogo como se lançassem chispas douradas.

Foi assim que o momento mágico aconteceu. Não me lembro se o Liquiçá tinha ficado amarrado a algum tronco de árvore ou se o deixámos solto. Eu nunca o amarrava. Habitualmente, quando eu estava junto dos meus pais e de outras pessoas, ele ficava silencioso e parado, sempre a alguma distância. Alguém disse uma vez que ele parecia uma pessoa educada que não queria intrometer-se nas conversas. Por vezes eu chamava-o: Likiii… Ele dava alguns passos lentos até mais próximo de nós. Eu afagava-lhe o focinho e ele ficava na nossa companhia, mais próximo mas sempre separado. Como uma pessoa solitária.

Então, naquela noite da fogueira, o Liki aproximou-se sem nos apercebermos. Não fez qualquer barulho. Só me lembro de olhar e ver a cabeça dele suspensa entre a do nosso companheiro timorense e a do meu pai. Eram três rostos que se reuniam na conversa, iluminados de vez em quando pela luz quente da fogueira. Eu não via o corpo do Liquiçá, perdido na escuridão. Admirava apenas a mancha branca da sua testa e o brilho branco do seu olho enorme como um quarto de lua num céu sem estrelas. Não me lembro quanto tempo estiveram os três ali, assim tão próximos, tão cúmplices, falando línguas que me eram estranhas e sobre assuntos que eu nunca compreenderia. Só recordo a beleza daquela imagem, a magia daquele momento. Ficaram-me gravadas em algo mais profundo do que a memória.

 


 

***

Levámos mais dois dias para chegar a Liquiçá. Eu pensava que lá não íamos encontrar japoneses. Enganei-me. Eram muito menos do que em Dili mas já lá estavam. Foram eles que nos indicaram a casa onde iríamos viver. E foi nessa altura que conhecemos o Sr. Kato, o oficial que comandava as tropas japonesas naquela região. 

 

II - A vida e a guerra em Liquiçá

 

Eu percebi desde o nosso primeiro encontro que o Sr. Kato gostava de cavalos. Ele afagava o focinho do Liquiçá sempre que nos encontrava. E é verdade que o Liki também parecia gostar dele porque não ficava indiferente às suas festas, como acontecia com outras pessoas. Eu falei disto ao meu pai e ele disse-me que tinha sabido por um soldado que o Sr. Kato criava cavalos perto da cidade de Nagasaki onde ele vivia antes da guerra. E que a filha dele, que era mais ou menos da minha idade, também gostava muito de montar a cavalo. Ela estava a treinar para ser uma atleta hípica. Eu não sabia o que isso significava. Explicaram-me que era um desporto em que o cavalo e o cavaleiro treinam juntos e são inseparáveis. Achei aquilo fascinante. Fiquei a gostar da filha do Sr. Kato mesmo sem a conhecer.

Ao fim de alguns meses já todos os soldados japoneses me conheciam. Eram muito simpáticos comigo. Cumprimentavam-me, faziam mesmo uma vénia, quando eu passava montada no Liquiçá. Alguns diziam umas quantas palavras a sorrir mas era tudo em japonês, que eu não entendia. Um dia o meu pai chegou a casa e disse-me que o Sr. Kato me tinha convidado para ir almoçar com ele e os seus companheiros, no quartel. Eu fiquei muito feliz com aquele convite. Estava muito curiosa por saber como seria a comida dos militares, sobretudo a dos japoneses. Tinham-me dito que eles não usavam talheres e que só bebiam chá e uma espécie de água-ardente muito forte. Por isso disse que sim, que devíamos ir. Mas ele corrigiu-me: disse que o convite era só para mim. Achei estranho mas é claro que aceitei. Ficou combinado que eu iria no Sábado seguinte. E fui.

Para mim, foi um dia de grande emoção. Arranjaram-me uma cadeira alta colocada no topo de uma mesa enorme, com todos os soldados sentados de ambos os lados. O Sr. Kato estava à minha direita. Serviram vários pratos que eu não conhecia, tirando aquela massa fina e um peixe pequeno com sabor a fumo. Eu não consegui usar os pauzinhos como eles e por isso deram-me uma colher e uma faca. Assim consegui comer quase tudo. No fim, o Sr. Kato levantou-se e falou para todos durante um bom bocado. Terminou o discurso levantando um copo pequeno e bebeu tudo de uma só vez. Os outros imitaram-no. Eu olhava para eles muito surpreendida e curiosa. Confesso que tudo aquilo me parecia muito estranho, como nos sonhos. Sentia-me como se fosse o motivo de uma festa cuja razão eu não compreendia mas em que era muito bem tratada, como uma princesa.

Depois do almoço, o Sr Kato pegou-me pela mão e levou-me para fora da sala. Mostrou-me as casas do quartel, com um jardim no meio. Era um jardim invulgar, muito bem cuidado mas tão simples como uma clareira na floresta. Tinha duas pequenas pedras negras no centro de uma superfície de areia branca rodeada por um círculo de pequenos seixos. Ele apontava para tudo só com o olhar, dizendo apenas de vez em quando algumas palavras em português que eu mal entendia. E por fim mostrou-me as cavalariças onde havia muitos cavalos. Pareciam-me todos muito limpos e bem tratados. Isso deixou-me feliz porque para mim os cavalos eram amigos, como da família. Depois disso levou-me até junto do Liquiçá. Eu montei, ele subiu para outro cavalo e acompanhou-me a casa. Foi a última vez que vi o Sr. Kato feliz.


***

Quando os bombardeamentos começaram a atingir a cidade deixei de ir à escola. Fugíamos para um subterrâneo da casa quando ouvíamos os aviões ou quando recebíamos o aviso emitido pela rádio. Os meus dias passaram a ter muito menos liberdade do que antes. Apesar disso eu acreditava que tudo iria passar e que eu havia de voltar a percorrer com o meu Liki as praias de Liquiçá. O rugido ensurdecedor dos aviões e o estrondo medonho das bombas assustavam-me mas depois eu voltava a ficar tranquila. Aquele barulho fazia-me lembrar os gritos de alguns pais timorenses quando ralhavam com os filhos. Gritavam imenso, ameaçavam com pancada mas depois tudo continuava na mesma. Ou os berros que os chefes militares davam aos soldados por razões que eu nunca entenderia. Acho que nem eles. Comecei a pensar que todo aquele barulho era só para assustar; a guerra seria uma máquina gigantesca para fabricar medo. Sim, mas era pior, muito pior do que isso. Eu via como na guerra havia sofrimento a sério, morriam pessoas e animais, casas eram destruídas, havia fome. Fiquei a saber que com o tempo muita dessa dor passava mas o medo ficava. O medo permanecia no coração das pessoas. O medo era uma doença contagiosa que magoava tanto ou mais que os outros ferimentos. As pessoas falavam com tristeza de outras guerras que tinham acontecido antes, longas e terríveis. E no entanto voltavam a fazer a guerra…

 ***

Pouco depois de completar dez anos, eu fiz o exame da quarta classe. Não foi na escola, foi lá em casa. Vieram professores de Dili e de outros lados. Organizaram a mesa do júri no nosso alpendre. Estava um dia de muito calor mas eu não vestia um dos meus vestidos brancos. Naquele dia especial a minha mãe deu-me um vestido azul com orlas de renda, brancas como a espuma do mar. Eu sentia-me preocupada mas feliz com todo aquele movimento. Os professores eram simpáticos, mesmo os mais sérios. Um deles fazia perguntas curiosas sobre coisas que eu nunca tinha visto nos livros. Mas também era verdade que eu tinha aprendido tantas coisas sem as ter lido. Pareceu-me saber as respostas para todas as questões. No fim, os professores felicitaram-me. Os meus pais pareciam mais alegres do que nunca. Foi um dos dias mais bonitos da minha vida.

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Houve um tempo em que eu tinha sempre fome. Fiquei a saber que já não se podia comprar comida como antes. Havia falta de alimentos e de muitas outras coisas por causa da guerra. A minha mãe estava muito magra e doente. O meu pai regressava a casa por vezes com um pouco mais de arroz e uns peixes. Não sei onde os comprava. Era pouco mas para nós era uma festa. Depois, com ajuda de um português amigo nosso, criámos uma horta no nosso jardim. Apanhávamos nas ruas os excrementos dos cavalos dos militares, que usávamos como adubo. As plantas, sobretudo as papaias, cresciam bem mas tínhamos que as apanhar ainda pequenas e verdes porque quando estavam mais maduras vinham roubá-las durante a noite. Os meus companheiros de escola timorenses eram todos muito magros. Agora percebo que deviam passar muita fome.

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Um certo dia decidi passear a cavalo pelas ruas da pequena cidade. Eu nunca o tinha feio antes. No período das aulas ia sempre a pé para a escola para não deixar o Liki abandonado na rua durante aquelas horas. E quando os meus pais me pediam para comprar alguma coisa no mercado eu caminhava até lá e voltava para casa sozinha. Mas naquele dia apeteceu-me meter por entre as casas, montada no Liquiçá. Assim, eu ficava quase tão alta como as casas dos timorenses. O Liki andava lentamente, à vontade dele, e eu deixava-me ir, vendo tudo de uma forma diferente, lá de cima. Era uma visão estranha que me fazia sentir como uma intrusa, como se não existissem barreiras. Não havia muros nem cancelas que me impedissem de ver ou de passar.  Foi então que, de trás de uma casa pequena pintada de cor-de-rosa (nunca me esqueci daquela casa), saiu um menino timorense pequeno e franzino que parou à nossa frente. Era o meu melhor amiguinho da escola, o único que brincava comigo. Com aqueles olhos negros enormes muito abertos observava-me em silêncio. Eu via no olhar dele uma mistura de encantamento e de receio. Perguntei-lhe se queria montar mas ele continuou silencioso e imóvel. Fiz-lhe sinal, apontando para a garupa do Liquiçá. Perguntei: "Tens medo?" Ele negou com cabeça mas apontou com ar assustado para um homem que devia ser seu pai, junto à casa, e depois fugiu. Nesse dia eu soube de um medo que até aí não conhecia, o medo ensinado. À noite, durante o jantar, contei isto ao meu pai. Ele respondeu-me com uma frase que nunca mais esqueci: "As pessoas com medo ensinam o medo, semeiam o temor dos outros. O medo é a semente da guerra". Eu fiquei a pensar naquilo. Comecei a perceber porque é que os outros meninos já não brincavam comigo, nem sequer se aproximavam de mim. No início ainda o faziam mas com o tempo começaram a ignorar-me; deve ter sido desde que viram que eu tinha um cavalo só para mim e que o meu pai tinha um carro. Acredito que não foram eles que decidiram afastar-se mas sim os seus pais que lhes disseram que eu era diferente, essas coisas que as pessoas crescidas metem na cabeça dos filhos.
Nessa noite, o meu pai contou-nos também algo que só poucos pessoas já sabiam. Os japoneses iam confiscar todos os cavalos da ilha porque havia pouca gasolina para os carros. Além disso, os cavalos podiam ir aonde os carros não chegavam. Naturalmente, fiquei muito triste e preocupada.

 ***

Nessa altura o governador de Timor-Leste estava desaparecido. Dizia-se que tinha fugido para as montanhas. Assim, para os japoneses só restava na região uma autoridade portuguesa, o meu pai. Por isso, vieram dizer-lhe para comunicar a toda a população que a partir daí seria proibido andar a cavalo. Apenas os militares japoneses teriam esse direito. Mesmo contrariado, ele informou as pessoas e advertiu-me que depois disso seria muito arriscado eu continuar a passear na ilha com o Liquiçá. Eu deveria deixá-lo em casa a partir daquele dia. Chorei. Pela primeira vez caiu sobre mim uma sombra de tristeza. Era como se de repente a ave enorme e negra, que de vez em quando aparecia a pairar no céu sobre a cidade, tivesse vindo encobrir a luz matinal que dantes entrava pela casa.

 ***

Vivi assim envolta em tristeza durante uma semana. Até que, uma tarde, revoltada, decidi contrariar a angústia que me afogava. Montei o Liquiçá e descemos para a praia. Assim andámos longo tempo sobre a espuma fugidia das ondas. Já estava o sol a mergulhar no mar mas eu queria prolongar aquela tarde de liberdade. Não era só por mim, era também pelo meu querido Liki. Começamos a voltar para casa já com o brilho das estrelas sobre as nossas cabeças. Nem me tinha lembrado dos meus pais. Só então pensei que podia já ser muito tarde para regressar. Talvez estivessem preocupados. Ia tão absorta a pensar nisto que nem vi os soldados. De repente, o Liquiçá parou. Um dos japoneses agarrava na rédea. Outro estava à nossa frente. Assustei-me. Fiquei paralisada. Iam obrigar-me a desmontar e levariam o Liki. A angústia invadiu-me. Fiquei em silêncio com as lágrimas a rolarem-me pela face. Os militares olhavam-me e falavam entre eles. O mais velho, que parecia um oficial, disse algo em tom firme e agarrou a rédea. Depois passou-a a outro soldado e começámos todos a andar, comigo ainda a cavalo. Pelo caminho percebi que íamos para minha casa. Quando lá chegámos, o oficial falou com o meu pai. Disse-lhe para passar no comando militar no dia seguinte, levando o cavalo. Ficámos todos preocupados a pensar no que iriam fazer os japoneses. No outro dia o meu pai cumpriu a ordem, levando-me com ele montada no Liquiçá. O homem que nos atendeu explicou-nos que eu estaria autorizada a andar a cavalo na ilha mas apenas “naquele” cavalo. Teria que levar sempre comigo um salvo-conduto para o caso de ser encontrada por militares de outro grupo. O Liquiçá seria marcado com um placa cravada numa orelha. Isso permitiria verificar a sua identidade. Para tal, ele teria que ficar na cavalariça do quartel por mais um dia ou dois. Sentia-me tão contrariada por me separar do Liki… mas, ainda assim, voltei feliz para casa.

 ***

Na manhã seguinte os aviões australianos voltaram a atacar o quartel de Liquiçá. Disseram-nos que tinham morrido muitos soldados japoneses. Nesse dia não nos atrevemos a sair de casa. Passado mais um dia, o meu pai decidiu ir ao aquartelamento japonês, saber do Liki. Fui com ele. Quando lá chegámos vimos tanta destruição que eu comecei a sentir o coração apertado. Pedimos para falar com o Sr. Kato. Ele veio ter connosco com um ar muito sério. Era natural que estivesse assim, com tanta destruição e sofrimento à sua volta. Mas pareceu-me que era mais do que isso. Quando lhe perguntámos pelo Liquiçá vi que ele teve dificuldade em responder. Contou-nos que uma bomba tinha atingido a cavalariça e que a maioria dos cavalos tinha morrido. Outros ficaram muito feridos e poderiam não sobreviver. Disse-nos que o Liquiçá estava ferido. Pedi para o ver mas foi-nos dito que ele ainda estava a ser tratado e que seria melhor não o incomodar naquele momento. Custou-me muito mas eu aceitei. Voltámos para casa numa tristeza tão calada que até o ruído dos nossos passos me magoava. Os meus pais não me disseram nada, apenas me abraçaram, sobretudo o meu pai como há muito tempo não fazia. Nessa noite não jantei e não dormi. Só já pela manhã adormeci com o cansaço. 


III - O outro lado da vida, o outro lado do mundo

«Os homens, em sua maioria, levam vidas de sereno desespero. Aquilo a que se chama resignação é desespero crónico.2»

Ao início da tarde do dia seguinte o meu pai veio buscar-me para irmos de novo ao quartel. O Sr. Kato recebeu-nos novamente, amável como sempre. Continuava com aquela expressão triste mas desta vez foi ele o primeiro a falar. Dirigiu-se directamente a mim, como se mais ninguém estivesse presente. Olhou para os meus olhos e disse-me que o Liquiçá tinha ficado muito ferido e que não tinha sido possível salvá-lo. "O Liquiçá morreu esta noite", disse-me sem rodeios.

? Morreu? …? O mundo que eu conhecia desfaz-se debaixo dos meus pés. Eu não quero ouvir mais nada nem ninguém; não consigo falar. Vou apenas escrever tudo o que sinto porque quero recordar para sempre a minha dor. Para um dia não me dizerem, para eu nunca acreditar que tudo isto foi apenas um sonho, um horrível pesadelo. Porque quero que o meu Liquiçá continue vivo, pelo menos na minha memória. 

Morreu? O meu querido Liki? Dizem-me estas palavras que eu não entendo: “o Liquiçá morreu esta noite”.  Como é que ele pode ter morrido? O que é que isto quer dizer? Que não voltará a correr feliz na orla branca do mar? Que não vou voltar a vê-lo? Que não voltarei a acariciar-lhe o focinho? Não tornarei a ver uma noite os seus olhos brilhantes à luz da fogueira? Como é que ele pode desaparecer assim de repente? Fica aqui um buraco na minha vida? É por isso que sinto dentro de mim este vazio? Não entendo, não posso entender! Nunca me explicaram nada disto. Como é que eu posso perceber? Os livros da escola nunca me falaram disto, nem os professores, nem os meus pais! Afinal, os livros sérios e as pessoas adultas não nos falam das coisas mais importantes da vida… Agora descubro que todo o mal vem do céu, os dilúvios e as pragas, as cinzas dos vulcões e as bombas; até as ideias de alguns homens importantes que dizem receber vozes lá do alto e que parecem só servir para gerar o ódio e a guerra. Ao contrário do que me ensinaram, não pode ser lá em cima que está o Paraíso.

Agora que passei a viver neste reino de angústia, de que me serve tudo o que aprendi? Tudo o que me ensinaram? Para que quero eu tudo isso no resto da minha vida? Ao fim e ao cabo, o que os seres humanos (que parecem saber tanto) fazem melhor, é matarem-se uns aos outros. O que estou eu a fazer neste mundo afinal? A aprender o quê? A estudar para quê? Para passar num mísero exame da quarta-classe? Ou para ir um dia, como os outros, aprender a fazer armas? As bombas que mataram o meu querido amigo! E os meus pais? O que sabem eles afinal? O que me contam eles dos meus irmãos? Os meus queridos irmãos com quem eu já não brinco… Que sabemos nós todos? Sobretudo os mais velhos, tão sérios e com ares solenes… O que me dizem eles neste momento? Como me explicam a morte de seres inocentes? Será que algum dia lhes perdoo este silêncio?  Olham-me com incompreensão por me verem tão amargurada durante tanto tempo e alguns atrevem-se a dizer que afinal o Liki era “apenas um cavalo”, “apenas um animal”. Ah!, como eu percebo agora que as pessoas só gostam dos seus iguais… Amam muito os seus filhos porque são réplicas pequenas dos pais; amam a família porque são seus semelhantes. No fundo, vivem como os peixes, perdidos no seu mundo, vagueando entre os seus iguais, alheios a tudo o resto. Como isto me entristece ainda mais! Só rezo para quando crescer continuar a gostar de todos os seres, de todos. Não quero ser como estes adultos que me olham com pena…  Eu é que devia ter pena deles. E não tenho!

 ***

Eu fechava os olhos e imaginava o Liki deitado, a sofrer mas em silêncio, como sempre. Deve ter morrido à espera de me ver. E eu não estava lá… eu não fui! E pensava: se eu não tivesse saído com ele naquele dia… Mas eu não imaginava, eu não sabia… Tanta coisa que eu não sabia! Só conseguia pensar nisto. A minha dor era tão grande que nem conseguia chorar. Que faria eu sem ele?

Passaram-se dias. Eu não comia. Não falava. Não queria ver ninguém. Acho que já nem pensava. Só queria lembrar-me vivamente das imagens do meu Liquiçá, dos passeios que dávamos na praia. Dos momentos em que ele ficava ao meu lado quando eu me sentava na falésia a ver como o Sol desaparecia no horizonte. Sim, o Sol também desaparecia ao fim de cada dia. E depois voltava. Talvez o Liki voltasse amanhã. Talvez eu o visse no nosso pátio ao nascer do dia quando eu olhasse pela janela do meu quarto voltado a nascente. E um dia isso aconteceu. Senti-me tão incrivelmente feliz! Afinal ele não tinha morrido e ali estava outra vez, silencioso e calmo ao pé de mim como num sonho. Mas tinha sido mesmo isso, um sonho, apenas um sonho…

Não, na realidade o Liki não voltou. Com o passar dos dias fui-me convencendo de que ele não regressaria. E com esse passar do tempo o meu coração foi ficando diferente. Não sei como, não consigo explicar. Não era nem mais triste nem mais alegre, era diferente. Como uma ferida profunda que vai sarando por fora, apenas por fora. Parece que dói menos mas não é verdade. Compreendi então, com o sentimento de algo que se desprendia dolorosamente no meu peito, uma coisa que ainda não tinha aprendido: tudo tem um princípio e um fim; o Liki tinha nascido e tinha ido morrer a Liquiçá. Talvez o fim fosse um novo princípio e vice-versa, talvez…

 ***

Já tinha passado muito tempo desde os últimos bombardeamentos. Já não se ouviam aviões a voar baixo como antes, nem havia sinais deles no céu. As patrulhas japonesas tinham deixado de ser vistas nas ruas e nas estradas. Comentou-se que os soldados estavam a abandonar o quartel de Liquiçá. Isso surpreendeu-nos imenso. Até que veio alguém dizer-nos que a guerra tinha acabado. Foi uma alegria enorme. Notei uma grande sensação de alívio no rosto dos meus pais. Continuava a faltar a comida. Disseram-nos, no entanto, que dentro em breve chegaria um navio com alimentos e roupa. Pela primeira vez desde o início da guerra sentia-se no ar um clima de esperança e de alegria renovada. Via-se nos rostos e nas atitudes. As pessoas começavam a reconstruir casas que tinham sido destruídas. Os militares japoneses tinham de facto abandonado a povoação.

Finalmente eu via a paz regressar a Timor. E tinha esperança de que aquele enorme pássaro negro, que eu vira mais do que uma vez pairar sobre a ilha, tivesse partido para sempre. Mas eu também tinha aprendido que aquelas aves negras voam sempre em círculos. Só as aves brancas, as grandes aves marinhas como o albatroz, cruzam os céus em linha recta para além do horizonte.

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Passadas algumas semanas soubemos que o Sr. Kato tinha sido preso junto com outros japoneses. Eu fiquei muito triste porque achava que ele era boa pessoa. Mais tarde vieram uns soldados australianos a nossa casa. Disseram que havia um oficial japonês que queria ver-me. Podiam levar-me até ele, se eu quisesse. Os meus pais autorizaram e eu fui com eles.

O Sr. Kato queria contar-me como tinha morrido o Liquiçá e pedir-me perdão. Tinha sido ele a matá-lo para não o deixar sofrer mais. Eu já sabia. Não tinha nada a perdoar. Acreditava que ele gostava do Liki tanto como eu. Só o matara por amor. Perguntei-lhe para onde iria a seguir. Ele respondeu-me que o iam levar dali mas que não sabia para onde. Eu disse-lhe que gostava de o voltar a ver um dia. Depois acrescentei: "Eu sabia o que aconteceu ao Liquiçá, o senhor não teve culpa". Ele olhou-me mas nesse momento era como se já não me visse ou como se olhasse através de mim, para muito longe. Depois disse com alguma dificuldade em português mas com as palavras ditas muito pausadamente para que eu percebesse: "Eu tinha uma filha como tu… ". As últimas palavras já lhe saíram sumidas, a voz rouca. Foram as últimas palavras que lhe ouvi. Quando ele disse “tinha uma filha” eu senti uma dor aguda no peito. Vi um pássaro negro muito grande a largar uma bomba sobre o lugar onde estavam os cavalos e a filha do Sr. Kato. Senti o chão a tremer e vi o céu ficar encoberto como nunca tinha visto, nem nos dias dos piores bombardeamentos em Dili. Comecei a soluçar e saí a correr. Cheguei a casa a chorar. Quando o jipe dos australianos me deixou, os meus pais perguntaram-me o que tinha acontecido. E eu só consegui responder "A filha do Sr. Kato morreu". O meu pai perguntava: "Como sabes? Foi o Kato que te contou?" Respondi-lhe: "Eu sei, eu vi, mataram-na com uma bomba". Nesse momento a minha mãe começou a chorar. Foi a primeira vez que chorou na minha frente.  Escondia o rosto entre as mãos e soluçava silenciosamente. Nesse momento eu percebi que os nossos dias em Timor tinham chegado ao fim. E compreendi também que a guerra não termina quando param os bombardeamentos e as armas se calam, porque ela deixa muitas feridas abertas no coração das pessoas.

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Naquela noite eu não conseguia dormir. Fechava os olhos e voltava a ver o grande pássaro negro com uma bomba presa nas garras que ele abria sobre a casa do Sr. Kato, no Japão. Eu estremecia apavorada. Por isso decidi ficar de olhos abertos e comecei a rever a minha conversa daquele dia com ele. Era tão triste. Eu sentia que aquele tinha sido o nosso último encontro. Só não sabia explicar o que vi nele naquela visita. Voltei a ver a cara e olhar dele quando começou aquela frase sobre a filha; era uma expressão conhecida mas que eu não entendia. Fez-me lembrar o rosto de um velho timorense que tinha sido morto num bombardeamento umas semanas antes. Era tão natural; não se notava sequer que estava morto mas percebia-se que não estava vivo. Não consigo explicar porquê mas faltava-lhe algo. Então eu compreendi o que vira no Sr. Kato. Ele já não tinha vida dentro dele, estava morto por dentro. Mais tarde eu descobri que na guerra havia muito homens como ele, que já tinham morrido por dentro. Estavam do outro lado da vida. A uns dava-lhes para se vingarem, a outros dava-lhes para perdoar como no caso do Sr. Kato.

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Tínhamos recebido de Portugal uma carta com uma fotografia dos meus irmãos. Pouco mais velhos do que eu mas tão altos e bonitos nas suas capas negras de estudantes. Como eu os queria ver e abraçar!

Faltavam poucos dias para o Natal quando embarcámos num navio chamado Angola com destino a Lisboa. Passadas algumas horas de termos deixado Timor eu já só via o oceano à nossa volta. Navegávamos rumo ao sol poente. Para trás tinham ficado seres e lugares que eu nunca ia esquecer. E tinha ficado a minha infância. Ou não teria? Aquela menina que julgava não ser possível sobreviver ao desespero tinha percebido aquilo de que os seres humanos são capazes mas interrogava-se: seria essa capacidade de resistir a tanto sofrimento a sua maior virtude ou o seu maior pecado? Se crescer significava resignar-se perante a miséria humana, ela preferia continuar criança.
Naquele momento eu não sabia em qual dos mundos queria ficar, naquele em que acreditara até há pouco ou neste tão incompreensível que me tinham obrigado a descobrir. Seria possível viver nos dois?
Olhei uma vez mais na direcção do nosso destino e a minha vista ficou presa àquela última réstia de luz suspensa no horizonte. O sol estaria a nascer do outro lado da Terra, pensei. E ocorreu-me que o sol não ilumina ao mesmo tempo o Oriente e o Ocidente e que é bom que assim seja para à noite podermos admirar as estrelas e sonhar com outros mundos e durante o dia conseguirmos ver bem a terra que habitamos e o caminho que escolhemos.

Ao cair da noite, ali sozinha na coberta do navio, eu sentia-me novamente longe de tudo e parada no tempo. Imaginei-me uma vez mais como uma ave que via o mar lá do alto, de tão alto que nem a espuma das ondas se percebia. Só o azul profundo do oceano que já não se distinguia do céu. E, perdido entre esses dois infinitos de azul, um navio quase invisível que não era mais do que um pontinho branco iluminado. A pairar sobre aquele navio, eu era uma grande ave branca que voava determinada e curiosa por conhecer o outro lado do mundo.


 «As pessoas grandes nunca percebem nada sozinhas e uma criança acaba por se cansar de ter que estar sempre a explicar-lhes tudo.3»


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1. Marguerite Duras. L’Amant, Paris, Éditions de Minuit, 1984

2. Henry David Theoreau. Walden; ou A Vida nos Bosques

3. Antoine de Saint-Exupéry. O Principezinho



 

 

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